31.3.08

Para começar a semana

"Temos a arte para não morrer da verdade."

30.3.08

Domingo, foto

Murano, 2007
Clique de Carol Zaine (1985- )

29.3.08

Antônio

Antônio era o antônimo de íntimo, não por ser anônimo, mas por ser entrega. No óbvio que evitava, avistava Deus e suas antífonas; no êxito que aviltava, voava sobre as mentes antiquadas. Antônio tinha acento circunflexo, pra combinar com seu ar circunspecto.

Mesmo extrátimo, avesso do in, dentro do fora e assimétrico na identidade, tinha lá suas fraquezas. Revelava-as antes, ao espelho, no banheiro ou mesmo nas viagens no inverso de seus sonhos, através. Antônio, seu nome.

Na biblioteca, por exemplo: intrépido costumava vasculhar os descartes alheios, numa tara irrefreável por consumir a leitura recém-completada. Sua diária lida. Locupletou-se, a vida toda, no já lido. Semblante santo, sentava-se na cadeira mais próxima daquelas mesinhas onde há o recado estampado: “Por favor, depois do uso, deposite aqui o livro utilizado”. E, num gesto certeiro e rápido, antes que a tiazinha gorda da biblioteca passasse recolhendo os livros “pra estatística”, apanhava alguns deles e levava para o seu alcance, um gosto de deleite no rosto, um sorriso interior, um sarcasmo bem Antônio.

Daí era só revirar aquelas obras misteriosas. Leminski falando de Cristo, quem será que pegou pra ler isto? Olha só, um livro de Drummond cheio de anotações a lápis... Guimarães Rosa? Stendhal? Gabo? Nossa, eu sempre quis pegar essa história da coca-cola, mas nunca me lembrava de procurar!

Outra fraqueza íntima de Antônio era caçoar, interiormente, do exterior. Não do exterior estrangeiro, nem do exterior próximo outro, mas sim do exterior externo a si mesmo. Quando se via sozinho, no quarto ou na rua, coçava sua pele e pelamordedeus que lhe faltava blasfemava contra sua própria antonice. E começava a arrancar pedaços antônios, num exercício de autodestruição no mínimo interessante. Sem dúvida, não havia nele qualquer resquício de estima própria.

Antônio morava na Casa do Ó: as maluquices meio que loucanizam os olhares. Licores. Laços. Vaga-lumes luciluzindo em todas as esquinas. Um retrato pra alguém nunca mais olhar.

Uma vez deixou cair seu canhenho. Assim:
1) Suéter: Molhado dependurado no varal. Aquele da matemática. Aquele do tempo em que eu era ilusões e me perdia na trigonometria analítica.
Um prendedor, uma bolha de sabão. Dentro da bolha um menino iridescente, sorrindo só no canto da boca, cigarro entre os dedos. Depois ele pára de sorrir. Depois ele sussurra o mais alto que pode, no limite onde o sussurro quase se deita e deixa de ser sussurro pra se tornar gritinho histérico:
- Ahahaha! Eu vou queimar a bolha de sabão com a brasa do cigarro! Ahahaha! Eu vou me libertar daqui! Eu vou me vingar de vocês! Protejam suas filhas, seus viadinhos! Protejam-nas porque eu as projeto!

Mas o canhenho continuou caído. Assado:
2) Aforismo: errou quem disse que as pessoas são engraçadas. As pessoas são é desgraçadas.

E quem disse que o canhenho se levantava? Assunto:
3) Incrédito: custou, mas hoje descobri que a esperança morre de soluço e o sol não nasce de desgosto.
Custou, mas eu paguei.

Chamaram até os bombeiros, mas o canhenho, ah, o canhenho parecia grudado ao chão. Assento:
4) Egotrip: passo as tardes desobstruindo os mecanismos criados para auto-satisfação. Depois volto pra casa contando as estrelas que escorregaram e viraram paralelepípedos do caminho. Aí percebo que os caminhos são todos intransigentes mesmo!

O canhenho lá... Absinto:
5) Loucubrações: como estão as coisas quando o mar está estranho? As uvas, a chuva, o momento e a água...
A cura nunca há mais, senão a dor pela saudade do que nunca foi direito.
Saudade? Não... Não há cura que destrua o saudosismo. O resto é história. Por enquanto há só a morte das lembranças amargas.
Morrem sim. Junto com a esperança: sensual e etérea vicissitude dos que se afogam nela.
Hoje o dia está assim. Esquálido.
Não há salvação por trás do texto.
Pensando bem: não há salvação na frente também. Não há salvação no nexo, tampouco no contexto. Que é que somos?

E a torcida toda gritando: ca-nhêee-nho, ca-nhêee-nho, ca-nhêee-nho! Absorto:
6) Sobre cronópios e famas: um manual para viver à toa. Dois manuéis para sorrir atéia. Três menudos para cair no atchim!

Saem os bombeiros, entra a maca. Canhenho permanece em estado autômato. Mas desligado. Abduzido:
7) Definição: quando descobri que os seres humanos não vinham com manual de instruções, deitei a cabeça no travesseiro e chorei por mais de duas horas sem parar. Depois voltei a mim e passei a encarar o mundo do jeito que as coisas se me apresentam mesmo.
Quando descobri a inexorabilidade da Lei da Gravidade, primeiro fiquei com raiva, depois fiquei com uma inveja desgraçada desses vereadores celestiais que podem tudo com suas leis que jamais serão revogadas.
Quando desperto de meus sonhos, sempre acho que a vida vale menos a pena.
Mas, mesmo assim, continuamos com nossas dúvidas e inquietações. Que são o que nos movem, não é mesmo?

O canhenho murmura pedindo água, mas ninguém mais se lembrava a fórmula dos dois hidrogênios para cada oxigênio. Abraço:
8) Mente oca: no silêncio sai o cio nervoso das palavras que hoje não quero escrever. Xô! Assim a sina persegue e a vida segue cega na invirtude efêmera dos não-seres.

Tentam pregar um esparadrapo na boca do canhenho, mas ele não usa mais cadarços. Ábaco:
9) Ao espelho: e diga-me, o que fomos ontem se nada estávamos por dentro de agora? Diga-me...

Idéiam pegar o canhenho e meter-lhe num balde de água fria. Mas ele foge. Aberto:
10) Ensaio para uma oração: maremoto ou destruição?
Olho para o horizonte e não percebo o que está nem onde.
Liga não. Isto de não ter ninguém no caminho só pode ser uma rede balouçando vazia. O resto se inventa, se vinga, se viceja. Amém.


***


Nunca mais ninguém acreditou nessa história de que Antônio era o antônimo de íntimo. Vai ver ele, tornando-se público, deixou de ser pudico.

- Tão abismada...

No meu canto, embebido de solilóquios e manifestações de apreço por mim mesmo, rezo todo-dia pra que ninguém me julgue ser seu alter. Antônio...

28.3.08

Filminho de sexta



Ah, a matemática.

27.3.08

Instante da estante

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.

À melhor, mulher

Respeito o teu silêncio mesmo quando ele quebra as bordas de meu âmago. Ele chega devagarinho e vai dormindo, é um verso avesso, é uma lembrança triste. Respeito o teu silêncio assim como respeitas minhas lágrimas, minhas rimas, meus desencantos.

Mulher: cose a minha vida para eu me perder nos teus braços!

Mulher: deslumbra-te em meus sonhos para que eu persiga os teus rastos!

Mulher: não sumas, pelamordedeus, pelamordemeuspais, pelamor...

Caminho ao teu lado, mesmo que não me perceba. Quando precisardes de um sorriso, solicita-me; um carinho, um afago, um senão, um talvez, sempre cá estarei. Sou tua sombra, sou teu ventre. Sou teu amante e teus sapatos, tuas chaves e teu amparo. Sou tua muralha, teu pedágio; mas também sei ser portal, pernas e janelas. Sou ponte.

Meu coração palpita, ausculta-me; sou tua desinência verbal, teu útero grávido, teu marido vivo, teu presente. Sou tua companhia inclusive na solidão e prometo sempre ser a luminescência exata dos teus pensamentos escuros e obtusos.

Às vezes acordo com uma vontade incrível de ser, para sempre, o brilho de teus olhos ou mesmo o cantinho inconfundível do teu sorriso sincero. Tem outros dias que o mau-humor nos domina e o mundo parece errado e o sol não tem graça nem a música que estou ouvindo. Mesmo assim, quero-te ao meu lado, e é injusto demais essa distância absurda que nos lacuna.

Procuro-te nas estrelas mais distantes e me dá um frio na barriga lembrar que elas já não estão mais. Fico preocupado com essas ausências e, se pego o telefone, não é para importunar-te nem nada; é para sossegar-me com a certeza de que não és tão estrela a ponto de extinguires-te.

Encontro-te num quadro de Monet, míope que sou. Depois viras a nitidez de uma fotografia bem tirada e assolas meu sentimento. Encontro-te numa carta de um ano atrás. Encontro-te nos e-mails velhos que tanto necessito.

Encontro-te. E cada vez com mais certeza, meu peito exclama:

- Minha mulher, sou-te.

26.3.08

Um quadro às quartas

La bouteille de vin, 1925
Obra de Pablo Ruiz Picasso (1881-1973)

25.3.08

queria mesmo era ser um computador. só para poder lerdear.

Agosto

"Agosto, mês de cachorro louco e ventania, passou
- mas passou por onde e onde ficará até ser hora de voltar?
Há gosto a gosto de Deus"
(Thaís Emília)

Gosto do teu gosto, teu rosto, teu resto, teu rasto,
teu jeito estranho de gostar do meu desgosto;
Gosto do infinito quando dorme dentro dos teus olhos
a olharem o nada e o tudo - é tão bonito!
Gosto somente do sentimento, semente da paixão
que plantei mas não entendo de agricultura pra colher;

Gosto quando psicografas Guimarães Rosa
e sempre cabe mais poesia na tua prosa
pra que uma rosa murche meu coração vermelho.

Gosto até da fera preferida fora de tua esfera
ainda que me fira pensar que fora assim feito;
Gosto da cor do silêncio quando te calas
e do sabor do sussurro quando murmuras;

Gosto sobretudo se me convidas a colher estrelas
e escolhes logo as mais belas para pôr nomes
e no meio de tanto nome que nomeias
há sempre um espaço que some, consome,
uma espaço vazio, escasso, quase fome,
onde cabem os nossos nomes.

Gosto quando o dia vai amanhecendo e me perguntas:
- Como vamos lamber a lua na poça d´água
se a claridade flutua nossa mágoa?

Terça sonora



"Os átomos todos dançam
Madruga"

24.3.08

Para começar a semana

"Se alguém te perguntar o que quiseste dizer com um poema, pergunta-lhe o que Deus quis dizer com este mundo."

23.3.08

Domingo, foto

Cicl(nud)ista, 2007
Clique de Denis Russo Burgierman (1973- )

22.3.08

as melhores idéias sempre escorrem pelo ralo;
as piores, apodrecem em nossos bolsos.

Quatro bregas antes

  1. Antes que alguém me acorde quero ter motivos para me perder nos acordes desta canção insone;
  2. Antes que o sol nasça quero sentir o abraço descompromissado dos notívagos perdidos;
  3. Antes que alguém me escute quero fazer ecoar o silêncio nobre pelos cantos recônditos sem voz;
  4. Antes que a lua se esconda não quero despertar hoje não.

21.3.08

Filminho de sexta



Um comercial bem bacana.

20.3.08

Instante da estante

TALESE, Gay. Fama e anonimato. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

19.3.08

SÉCULO 21, TEC-TEC HIGH-TECH

tec-tec-tec-tec-tec
silêncio
o eco tec-teclando detecta mais um poema
ou um novo bug-problema?

impossível saber ao certo
se perto de bits e bytes tudo é fiasco
o tecno-asco global redireciona os valores

formata-se o hard disk
mata-se o ser humano
e a língua portuguesa
míngua minha mágoa

tec-tec-tec-tec-tec
silêncio
entre bits e bytes o poeta faz um poema
pensando na amada virtual
quase uma paixão cibernética
no meio do e-mail
quase um prazer carnal
teclando-se?

acessa-se uma home page
cessa-se o sono para sempre
noites perdidas, versos chocos
sina vespertina de não dormir

tec-tec-tec-tec-tec
silêncio
silêncio todos por favor, ouçam-me senhores
minha voz metálica robotizada quer falar
quer reclamar a preservação da espécie
da língua, dos beijos, do poema
antes que tudo vire vício de silício

Um quadro às quartas

Industrialização do Brasil, 1960
Obra de Candido Torquato Portinari (1903-1962)

18.3.08

Terça sonora


"Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz?
My friends all drive Porsches, I must make amends"

Poema do centenário de Drummond

no meio do caminho tinha um retrato de poeta
e as pessoas passavam pisoteando sem dó a cabeça oca do poeta louco, coitado!
porque este é um país em evolução:
quase mais ação do que emoção
oitenta e oito por cento têm controle remoto
e pensam possuir o poder nas mãos...

no meio do caminho tinha um retrato de poeta
tinha um retrato de poeta no meio do caminho
e eu, sozinho, nunca me esquecerei desse acontecimento
quem traga a droga pode ver a vida ventando diante dos olhos
grande dragão caolho, esse drummond!

no meio do caminho tinha um retrato de poeta
e eu, anacoreta, parecia um vaso de flor
no dia em dor que descobri que pirlim-pim-pim
era alucinógeno-mor do reino encantado.

17.3.08

Para começar a semana

"Quantas vezes, desde o início da tradição romântica lá pelo final do século XVIII, o entusiasmo de um grupo de jovens que combinava promessas, talentos de primeira grandeza, excêntricos em estado puro e meros circunstantes, unidos pelo desconforto na sociedade e pela disposição de inovar, não acabou deixando marcas duradouras? Em quantas ocasiões não se repetiu o padrão do sturm und drang, ou do círculo bironiano, dos simbolistas em sua associação com os "malditos", das diferentes vanguardas e modernismos, do surrealismo em sua fase heróica, dos britânicos de Bloomsbury, da geração beat em sua origem?"

Claudio Willer (1940- )

16.3.08

Metrópole

Cansado de tanto esperar sentado
O passarinho deitou-se no fio elétrico
E dormiu.

Questão de pontuação 3

Entre parênteses
Soltamos exclamações violentas
E somos travessos travessões.

Questão de pontuação 2

Passo minha vírgula
Em seus dois pontos:
Só reticências.

Questão de pontuação 1

Escorrego no ponto de interrogação
Só vou me exclamar
Quando você chegar ao ponto final.

Domingo, foto

A vista da sacada do Hotel Chile, 2008
Clique de Daniela Toviansky (1978- )

14.3.08

Eu vi

nuvens tiravam um racha no céu cinza
o vento vinha, roubava a poeira posta no chão
logo a chuva traficaria novas gotas de ilusão
(parece que tem uma lei de mil novecentos e tal,
número tal, artigo tal,
que proíbe o comércio legal de ilusões).

malandros disfarçados de pássaro praticavam a punga
batendo a carteira de sementes alimentares
dos pomares e outras coisas mais de se comer.
gafanhotos surfistas assaltavam ao léu.
e uma águia decolava feliz em excesso de velocidade.

piolhos contentes brincavam de pique-esconde no bigode de deus
e era um charme o bigode de deus.

enquanto isso, policiais militares descansavam
tomando caldo-de-cana no acostamento da sp-255.

predifícil

correndo da carranca do carimbo, caramba!

correndo somos nós/ a carranca é a cara de mau do carrasco/ o carimbo é a burro-burocracia/ o caramba é a interjeição nossa mesmo.

eis o começo que meço que remeço que arremesso pra de volta do começo, recomeço, come, come, começo.

correndo, carranca, cara de mau, carrasco, carimbo, caramba.

“brás cubas inventa emplastro genérico”

“bispo sardinha é deglutido novamente por poetas antropófagos”

“jornal estampa mentiras neomodernistas”

sangue, sangue, sangue, a morte da poesia, os versos in prosa in verso inversos, tchau virou bai bai brasil, vai vai vrasil!

agora é tudo internet, internei-me na internet.

ocorrendo somos nozes/ a barranca é a barra de cal do penhasco/ o limbo não-limo é lambido pela burrocracia/ caramba! – tá na hora tá na hora de arremessar os lança-chamas e as lanchas-amas, flâmula nacional.

quanta abobrinha pra encher um prefácio dificílimo.

Filminho de sexta

Uma pitada de poética visual. Arquitetura.

13.3.08

Instante da estante

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

12.3.08

O fio

O telefone tocou, matando mais um texto:

- Alô!

- Alô!

E quedou-se mudo, diante da aloqüente exclamação álica, porque não alada, mas sim alô. Quedou-se mudo, o aparelho caiu e despencou céu abaixo, matando três pessoas no tilintar de seu diz-que-diz-que, no decrépito viés de seu gancho, nos fios hermafroditos de seus botõezinhos, na falta de discernimento se pulse ou tone.

A primeira vítima era um executivo de terno, óculos escuros:

- ... então mande deixar todos os documentos sobre minha mesa! E não me faça mais perguntas idiotas, quero vê... – e foi interrompido, morrendo de celular em punho, raiva nos olhos, força entre os dentes, boca franzida, camisa nervosamente suada.

A segunda vítima era um funcionário da empresa telefônica. Aliás, um funcionário da empresa que presta serviço à empresa telefônica, já que, faz muito, a empresa telefônica não passa de um ente a contratar serviços, terceirizando toda a mão-de-obra que abracadabra. Ele trajava camisa verde-limão e calça de um azul ridículo. Estava fazendo a manutenção de um aparelho e, para efeito de teste, dizia:

- Testando aparelho. Um, dois, três. – E enquanto esperava por uma resposta, sentiu um solavanco na cabeça e o tum-tum que veio foi do telefone alienígena caindo, caindo, caindo. Antes de morrer ainda pensou na mulher e nos três filhos a quem deixava prestações a pagar e se perguntou como era que a coisa que lhe bateu conseguiu transpassar a fibra de vidro do orelhão. Foi enterrado com uma bruta cara de interrogação, em cerimônia simples.

A terceira vítima tinha sete anos e ainda acreditava que era possível ser criança de verdade e brincar de telefone de latinha. Mesmo que seja cada vez mais difícil encontrar massa de tomate que não venha em embalagem Tetrapac.

Um quadro às quartas

L'enfant à l'orange, 1890
Obra de Vincent Willem Van Gogh (1853-1890)

11.3.08

Não entendo nada de simetria, já cansei de lhe explicar. Quando olho esta cidade me encho de orgulho, e tédio. Tudo o que aqui vivi. Tudo o que me construí. Tudo o que sei, sou, sim. Malditos trocadilhos. Aqui sofri.

O EVANGELHO SEGUNDO OS RATOS (e a saga de universitários indefesos)

*escrito em meados de 2002.
No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava vazia, sem queijos e guloseimas; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as poças d’água das goteiras.

No catecismo dos ratos, a lição tinha um caráter de religião e de história. Porque ao mesmo tempo em que eles oravam ao Deus onipotente, onipresente, onisciente, onírico, onimaginável e onimal, podiam conhecer como o mundo fora criado antes de existirem os mamíferos roedores. Um tempo pré-Ratão e pré-Rateva, juntos no Éden, comendo maçãs e sendo tentados porque toda nudez será castigada.

No princípio era o vestibular. E o vestibular se fez vaga e habitaram entre nós.

Quando, depois de anos de penumbra total e fome, a casa foi aberta, a comemoração reinou no reino dos ratos. Os ratos poderiam voltar a roer a roupa dos reis de Roma. Enfim, moradores humanos! É o fim do jejum e da penitência.

Deus disse: “Fiat lux”. E o funcionário da CPFL veio e nos propiciou desfrutarmos da invenção de Edison. E Deus viu que a luz era boa, ainda que sujeita a apagões. E separou a luz das trevas, onde mora o ministro Pedro Parente. À luz, Deus chamou “dia” e às trevas chamou “retenção de despesas”.

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1.
Móveis arrastados. Muito barulho. Limpeza.
Ratos apavorados convocam reunião extraordinária:
- Prezados colegas, a situação é calamitosa. É evidente que nos será de bom grado a instalação desses humanos na casa, uma vez que teremos abundante comida a fim de saciarmos nossa fome. No entanto, com toda essa arrumação e limpeza, muitos de nós estão sendo exterminados! – alarmou o prefeito Sr. Ratan Chis.
- Diz a Bíblia que ainda não é chegada a hora do Apocalipse, meus irmãos. Mas são os sinais do fim dos tempos. Vigiai e orai, porque vós não sabeis a hora. Purificai vossos corpos e vossas almas... – o religioso advertiu.

2.
Calor de Bauru, a limpeza virou uma farra com muita água no chão e cerveja nas mãos. Os jovens comemoravam, afinal haviam conseguido passar pelo funil do vestibular e estavam ali, prontos para a vida nova.
- Viva a República Caleidoscópica, onde a realidade é uma alucinação! – gritava Carlão enquanto descarregava uns móveis velhos que a turma comprara num feirão a preços módicos.
Soninha limpava o canto da sala e foi a primeira a notar que já havia moradores na casa. Um ratinho foi tentar participar da festa e derrubou uma lata de cerveja...

3.
- As famigeradas ratoeiras já não nos metem mais medo. Só humanos ridículos pensam que uma armadilha tosca dessas pode nos capturar. Anos e anos de seleção natural nos garantiram a habilidade de não cair na arapuca. – comentou um jovem rato, presunçoso.
- Mas existem os tóxicos. São terríveis! – lamentou uma velhinha, com terço na mão.
- Pô tia, nem tanto. Se não formos a fundo, não tem grilo. É só doideira, curtição... O perigo é a overdose, mas tem risco não! A viagem vale a pena, faz a cabeça... – resmungou, chapadão, um rato-gonzo.

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Bauru (ou BigMac), 17 de abril de 2002.

Mãe:
Sei que é muito demodê eu ter que escrever cartinhas para você. Mas já viu, né!? Depois que cortaram o nosso telefone mesmo a gente implorando pro moço pelamordedeus... E-mail? Difícil com aqueles computadores jurássicos que reinam obsoletos no nosso câmpus. O jeito foi apelar, “carta social”, um centavinho.
Estamos morando em mais gente aqui. Sim, além do Carlão, da Soninha, do Teco e de mim, temos a companhia de adoráveis mamíferos roedores. Até levei alguns para o laboratório de biologia, mas não adianta: eles se reproduzem rápido demais e não há como manter a homeostase desse sistema. Daqui a pouco, vão dominar a República Caleidoscópica.
Já tentamos de tudo: vassourada, ratoeiras, veneno... Semana passada decidimos não ter mais comida em casa, para ver se a fome os faria procurar outra praia. Sem chance. Parece que eles já viviam aqui antes da gente e se consideram os donos da casa.
No mais, tudo bem. Estudando um pouco, curtindo muito a facul. Pode deixar, estou me cuidando. Não se preocupe com as festas, elas não vão não acabar com a gente.
Um beijo para o pai e outro para você.

Carol.

Ps.: Penso seriamente em arranjar um gato – a Soninha está com um que faz Educação Física...

[Tãtã-tãtãtã-tã-tã-tã... Chamada a cobrar: após o sinal diga seu nome e a cidade de onde está falando]
- Mãe? Aqui é o Teco. Isso. Também, mãe, também estou com saudades. Tá, tá tudo bem. É tô estudando um pouco, mas estou gostando sim. Tô comendo direito sim. Vô só no Dia das Mães. Não mãe, pode deixar que eu tô me cuidando. Tô maneirando nas bebidas, não se preocupe. Namorada? Não, pelo menos oficialmente, afinal tenho que curtir as festas né, mãe?! Pode deixar que eu me cuido. Sabe o que é? A casa está infestada de ratos... É. Alguma idéia do que fazer? Não, mãe, não precisa vir aqui não. Não ia adiantar nada. O quê? Já tentamos ratoeira, veneno, tudo. Até vassourada. A Carol andou até levando uns para o laboratório de biologia pra ver se diminuía um pouco. Eles já moravam aqui antes, se acham os donos da casa. Imagine, nossa querida República Caleidoscópica, ocupada por mamíferos roedores medíocres! Tá, vou tentar, então. Vamos ver. Tá. Manda um abraço pro pai. Valeu, mãe, um beijo.

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$$$ A SUA CHANCE DE GANHAR DINHEIRO $$$
A República Caleidoscópica está promovendo uma sensacional gincana. Durante todo o sábado, aquele que conseguir caçar mais ratos ganhará um prêmio de 100 reais em passes de ônibus e vales-marmita.
Informações: 5553 0939, com Carlão.

“Tudo bem, a idéia não foi tão genial assim. A gincana teve só dois inscritos, aliás dois colegas de sala que ficaram compadecidos com a causa nobre. Parece que ninguém estava afim de exterminar os ratos da Caleidoscópica. Melhor seria fazermos uma festa. Viria mais gente, rolaria umas transas e uma farra merecida. Na verdade estamos precisando relaxar, os ratos nem são tão maus assim, dá pra conviver com eles.”

Enquanto isso...
- Não é possível. Não agüento mais esses humanos. Eu disse que era bem melhor morar numa casa de família, mas tinham que alugar essa casa para um bando de estudantes? Tinham? Eles não têm grana para comprar comidas mais sofisticadas e ainda ficam inventando armadilhas absurdas para tirar o nosso sossego... – dizia um ratão saboreando um resto de comida no chão da cozinha.
- Ora, ora... Não reclame. Aqui é bem melhor. Casa de família é tudo arrumadinho, não sobra essa comida no chão, nossa alimentação é muito mais difícil. Ouça a voz da experiência, meu caro, eu já morei em casa de família.

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- Dá-se o nome de rato, de modo geral, a todo mamífero roedor do grupo dos miomorfos e aos histricomorfos, da família dos equinídeos. Genericamente, pode-se dividir esse grupo de roedores em ratos-domésticos, da família dos murídeos, e ratos-silvestres, das famílias dos cricetídeos e equimimídeos. Os cricetídeos são ratos de pelagem macia e os equimimídeos possuem pelagem dura. Os verdadeiros caracteres de separação do grupo estão baseados na estrutura dos dentes e ossos cranianos.
- Ai meu Deus, por que fui prestar biologia? Por quê? – Soninha, desesperada em sua aula, depois de passar a noite sem dormir, tentando caçar os ratos da Caleidoscópica.
- Os ratos-domésticos são considerados no Brasil espécies invasoras. As espécies mais prejudiciais são a ratazana ou rato-de-esgoto e o rato negro. A ratazana é...

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Caleidoscópica. Lucy in the sky with diamonds. Tem gente cantando, tem gente esperando a hora de chegar sexta-feira, de chegar feriado, de chegar férias, de chegar casa-comida-roupalavada-colinhodamamãe. Ausência de ratos. Mickey Mouse na TV, inofensivo. Sabe que agora eu vou torcer sempre para o Tom, não gosto mais do Jerry, não gosto mais do Jerry, não gosto mais do Jerry. Caleidoscópica. Lucy in the sky with diamonds. Without mice.

“Esta noite tive um sonho. Um sonho pesado, pesadelo, medo. Eu, sozinha, nua na cama, calor. Um rato começou a passear pelo meu corpo, delicadamente, fazendo cócegas. E eu até gostava. Sabe, quando ele passeava pelo meu corpo, pelas áreas mais recônditas... Credo! Aquele ser repugnante, e eu até gostava. Ando mesmo precisando de um namorado. Arranjar um gato para matar os ratos!”

- Os ratos devoram tudo quanto é comestível, desde cereais e frutas até a carne em decomposição, chegando mesmo a se entredevorarem. O que os torna mais perigosos, contudo, é o fato de serem portadores de germes de graves enfermidades, tais como a peste bubônica, a triquinose e o tifo. A famosa peste negra da Europa, ocorrida em meados do século 17, e as epidemias de peste bubônica no começo do século 20, como vocês devem ter estudado em História, foram devidas a uma excessiva propagação de ratos.

“Lembro da história do professor Tomás, lenda ou verdade, que foi estudar o desequilíbrio ecológico de um povoado lá nos confins da Inglaterra. O nome dele, aliás, era Thomas. Tinha a ver com ratos, mas não me lembro bem. Ah! sim, ocorria que os ratos acabavam com as plantações de grãos daquela comunidade. Então os maridos tinham de ir embora pra cidade, atrás de emprego. As suas esposas, muito sozinhas, arranjavam gatos para lhes fazer companhia. Os gatos acabavam com os ratos e as plantações novamente tinham sucesso. Os maridos voltavam, as mulheres davam fim nos gatos. E assim, as gerações se alternavam...”
- Combatidos sem cessar, sobretudo em épocas de epidemias, os processos mais correntes para exterminá-los são as ratoeiras e os venenos. Apesar de tudo, os ratos têm seu aspecto útil: a variedade albina, principalmente, é muito utilizada em nossos laboratórios de biologia. São ainda utilizados em grande escala nas investigações de genética, e empregados nos laboratórios de psicologia experimental. O camundongo, embora muito...

Caleidoscópica. Lucy in the sky with diamonds. Agora sim, corpos se entrecruzando, fim de festa, o prazer reinando absoluto. Caleidoscópica. No instante mágico as cores se misturam, os gostos se misturam, as almas se misturam. Quem inventou o amor? Não sei, não quero saber e nem saber quem sabe, quero é vivê-lo plenamente. Energias se misturam. Imagine all the people sharing our republic, you may say I’m a dreamer but I’m not the only one. Caleidoscópica. De quem são os lábios que me beijam? De quem são os braços que me tocam? De quem são as pernas que são minhas? Caleidoscópica.
But the dream is over: tinha um rato no meio do caminho, um rato voyeur que, não se contentando em contemplar-nos, decidiu participar e foi... a tragédia... Tinha um rato no meio do caminho, no meio do caminho tinha um rato. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas... Na minha vida universitária. Na vida da República Caleidoscópica.

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Ok, nós perdemos. Ratos crescem, reproduzem-se, locupletam-se. Por isso alguns humanos são comparados a ratos, principalmente políticos. Por isso.
Vamos mudar de casa e deixar esta aos ratos. A República Caleidoscópica vai começar de novo.

Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim dos tempos, seja na graduação, seja na pós-graduação.
Se eu pudesse escrever na água, não a ficaria carregando em meus bolsos. Furados, ainda por cima.

Terça sonora



"While my guitar gently weeps"

10.3.08

Das divisões do mundo

Há os navegantes, os navegadores e os navegados.
A natureza é erótica. Eu, um baralho.

Para começar a semana

"Não chega a ser bem um poema, mas a vida não é nenhum poema. Se eu dissesse isto ao presidente da República ele me acharia supinamente ridículo, e os seus áulicos com ele; e no entanto é a pura verdade. Mandei a frase a um jornal, subdividida em estrofes, e nem sequer me deram qualquer resposta: assim se escreve a história de um herói da última guerra, ou de qualquer guerra, ou de qualquer herói."

Walter Campos de Carvalho (1916-1998)

9.3.08

Domingo, foto

Calango bauruense, 2004
Clique de Edison Veiga (1984- )

8.3.08

Do poema

O poema está na fábrica, esperando as peças certas.
Falta um pedaço, importado.
Importante, empecilho.

O poema está na fábrica, querendo um operário tom-zé.

O poema está na fábrica, mais-valia fosse eu.

7.3.08

Filminho de sexta


Os três porquinhos. Em uma versão imperdível.

6.3.08

Para que ficar no algo se você pode ter alguém?

Instante da estante

GAMBOA, Santiago. A síndrome de Ulisses. São Paulo: Planeta, 2006.

5.3.08

Acerca dos intervalos e suas relações histórico-temporais

E aí há os intervalos. Que servem para isso. Para a fria ilusão de que a vida perdeu o vinagre. O tédio. O nada. O que a estragou. E que não existe mais a palavra aziaga a cimentar as esperanças de outrora.

Um quadro às quartas

Metamorfose de Narciso, 1937
Obra de Salvador Dalí (1904-1989)

4.3.08

Enjoado de algumas pessoas. Algumas desde sempre. Outras a partir de ontem. No fundo, crio eufemismos para fugir de mim.

Noite de Natal

Onze da noite.
Crianças sonham acordadas com o presente dos sonhos;
Mulheres fazem os últimos preparativos para a Ceia;
Homens tomam drinques enquanto comentam o ano que se vai.

Onze e meia.
Surge a primeira discussão na criançada reunida;
Uma mulher quebra um cristal, mas se dispõe a pagar;
Os homens continuam bebendo e falando de futebol.

Quinze pra meia-noite.
Um menino puxa a orelha do outro que revida um beliscão;
A anfitriã prepara a mesa e confere as taças;
A um chamado, os homens vão até a cozinha.

Meia-noite. É Natal!
Festa, alegria, espírito de fraternidade...
Todos brindam com champanha (à exceção das crianças, que tomam guaraná ou soda-limonada)

Na churrasqueira (porque no Brasil não tem lareira)
Papai Noel está entalado com seu saco cheio de paz.
Mas ninguém vai ajudá-lo.
As pessoas estão ocupadas demais para acreditar em Papai Noel.

Terça sonora



"E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz"

3.3.08

Ânsia

Gastei o dia enumerando nuvens.
Às nove, aumentei os ângulos;
Às novas, alinhavei desgraças;
As outras permaneceram caladas
- todas ouvidos, aliás.

Mais tarde fui esperar só
com a fábrica de sonhos lacrada
e os sentimentos no balanço.

Às dores sempre me convido
para um jantar mal servido.

Hoje acordei com vontade ser quase

(A sensação é horrível)

Para começar a semana

"Yo creo que desde muy pequeño mi desdicha y mi dicha al mismo tiempo fue el no aceptar las cosas como dadas. A mí no me bastaba con que me dijeran que eso era una mesa, o que la palabra 'madre' era la palabra 'madre' y ahí se acaba todo. Al contrario, en el objeto mesa y en la palabra madre empezaba para mi un itinerario misterioso que a veces llegaba a franquear y en el que a veces me estrellaba."

Considerações poéticas

Não vejo motivo pra comemorar.
Meus objetivos são eqüidistantes
e não invejo ninguém! (aquém ou além
de meus horizontes)

Linda
é a linha tênue
que separa
A ternura da desgraça,
O amor do vício,
O tempo do espaço,
O finjo do não posso...

(Enquanto o vento que por nós passa
Nos consome feito traça
Somos menecmas da solidão!)

Como rir se não há remédio?
Como dormir com esse prédio
feio adulando minha cabeça?
Como sorrir diante do tédio
velho formatando a pressa?

Quem eu sou?
Se me jogo, tropeço
Se jogo, não venço...
Acaso não percebo ser o espelho de tua graça
E o poço dos teus desejos?

2.3.08

Domingo, foto

Anhangabaú, 1939
Clique de B.J.Duarte (1910-1995)

coisas que eu odeio

  • olhar para os lados antes de atravessar a rua;
  • varrer a casa - prefiro mil vezes lavar a louça;
  • inventar desculpas para não dizer simplesmente não;
  • não ter e-mail novo para ler;
  • corinthians;
  • insônia;
  • ter vontade de escrever mas não saber bem o quê;
  • querer e não poder;
  • não sonhar;
  • pautas chatas;
  • livros não lidos;
  • você.

Eu-interior

Quero arranhar o mundo com minhas unhas tortas e sujas:
A chuva contribui lacrimejando o céu!

Não sei mais o que é a vida
Nem se ela cabe nos meus sonhos.
Agora sou pedra, sou inquebrantável,
Sou um louco obsessivo costurando o nada:
Se a linha acaba não há mais telefone
Nem fome nem nome.

Quero arrancar do mundo a sujeira torta de minhas unhas:
Seco a chuva com lenços de papel
Não gosto de ver ninguém chorando
Nem os anjos.

Não me lembro o que é a vida...
Pode?

Não caibo em meu bolso, não sei mais voar...
Sou o anjo decaído que o inferno recusou!
Brinco de poesia mas o prédio é alto
Alto, alto, auto-tédio: perfeita ponte suicida...

Hoje descobri que não sou tão feio assim
Mas a lua, hem!?
Cada vez mais bonita...