30.7.07

Mas eu moro aqui. Tão longe do céu.
Se eu não morasse aqui, certamente iria me dedicar a contar estrelas. Nos dedos.

23.7.07

Trístico

não me vendo;
prefiro os olhos
bem abertos.

21.7.07

Eu era um homem que colecionava pedrinhas de gelo

Até que elas derreteram.

E, de líquido, ficaram só minhas lágrimas.

20.7.07

Eu era um homem que tinha uma árvore

“Maybe I’m a man and maybe you’re the only woman
who could ever help me
baby won’t you help me understand”
(Paul McCartney)

Eu era um homem que tinha uma árvore.

E minha existência era feliz, por conta disso, pela árvore estar em minhas mãos, por ser minha, por estar minha, por me pertencer enquanto vida em minha vida. Eu era um homem, e tinha uma árvore. Como a regaria todos os dias e a adubaria semana sim, semana não, como contaria segredos ao seu pé que nem ouvido, como escreveria iniciais de todos os nomes em seu caule quando ela estivesse crescidinha e pudesse abrigar amores.

Eu era um homem que tinha uma árvore, repito, e esta verdade consolidava a minha existência.

– Eu quero!

– Quer não!

– Eu quero!

– Quer não!

– Onde você vai plantar? – Onde? – Tenho quintal! – Eu não. – Vou plantar no Ibirapuera! – Eu, na praia. – Praia não tem árvore, tem coqueiro! – Ah, é!? – É. – Vou plantar num sítio, então. – Até lá vai morrer, já tá murchinha...

Odeio mortes. Olhei para minha árvore, agora ameaçada de morte. Eu odeio mortes. Olhei para minha árvore, agora ameaçada de morte, como se um fuzil houvesse apontado em sua direção. Eu odeio muito mortes. Se pudesse, mataria todas as mortes enforcadas, para que nunca mais importunassem ninguém. Mas que chato seria a humanidade eterna, viver pra sempre, mais que vegetal, mais que mineral.

(Desconfio que odeio mortes só dos outros.)

– Toma, a árvore é sua, será mais feliz solta no mundo. Plante-a bem. Cuide-a. Toma, a árvore é sua, não mais minha, não tenho mais uma árvore, não tenho mais uma árvore, não tenho mais que disfarçar essas lágrimas, não tenho mais minha fábrica particular de fotossínteses, não sou mais ecologicamente correto, não tenho mais minha cota de reciclagem de carbono para dormir com a consciência em paz.

Não sei onde ela está agora. Se chora de saudades, se dorme bem, se tem companhia, se passa frio, se vai casar. A ausência precoce de minha árvore, que partiu para ganhar o mundo ainda novinha, meio sem se despedir, me perturba. É com a insônia de um pai que abro a janela e saio gritando pelo seu nome. Um nome que me esqueci de lhe dar.

No CD player, Paul cantarola, incansável, alheio, quase feliz.

18.7.07

Solo

Com suas asas brancas, o demônio domina molduras estereotipadas e, livro na estante, brinca de quebrar instantes.

Solo de sax. Gelo seco. Sorriso e saudade.

No canto do sofá, Anselmo folheia uma revista velha, mas quem dera se distrair. Pensa na pena que viu escorregar hoje pela sua defesa. Acaricia a barba e, na imaginação, encara a carranca do juiz inexorável, com seu martelinho a determinar os tantos anos de prisão ao seu cliente.

Se mais gente houvesse, um amigo ou uma mão, estaria justificado Anselmo e sua implicância em se acomodar no canto do sofá. Que nada! Anselmo era sozinho, como um solo de sax, como um gelo na garganta seca, nunca sorriso, sempre saudade.

Ali na renitência bruta do ambiente quieto, perambulava o demônio e suas asas brancas, como eu já lhe adiantei no primeiro parágrafo mas você não acreditou porque julgou a imagem pouco verossímil. Não, não adianta disfarçar; eu também já fui leitor e sei bem como é isso.

E o demônio é invisível aos vivos. Anselmo julga-se só.

Até que.

O demônio espirra.

Todo-mundo sai correndo.

(Ainda bem que todo-mundo é só Anselmo, senão teríamos um alvoroço!).

Quando ele tropeça, acorda em sua cama, pelado, suando frio. Tudo bem, tudo bem, outro pesadelo, o julgamento de seu cliente é só amanhã, às 10 horas, não é mesmo?

O único detalhe é que, na sala, a mesma revista velha está aberta, ao chão. E o CD de jazz, findo, repousa no deck.

Com suas asas brancas, o demônio domina molduras estereotipadas e, livro na estante, brinca de quebrar instantes. Saudades de quando era anjo, o mais belo, o mais poderoso, o mais sozinho.

O demônio nunca aprendeu a tocar harpa.

15.7.07

O de sempre

A dona da casinha de bonecas decidiu reformar a casa. Comprou uma cortina de isopor, mudou a cor dos eletrodomésticos, arranjou um namorado novinho em folha, trocou a mobília do quarto e parcelou uma TV de plasma. A única coisa que não mudou foi sua cara horrenda, seu mau humor costumeiro e todas as incoerências de sua cabeça que vivem vitimando as pessoas ao redor.

13.7.07

Joie de vivre

Toda novidade é inventada, diria meu avô, e estas foram suas últimas palavras, ali, no leito da agonia, tadinho, já era, câncer no pulmão, fumante inveterado que vivia tragando a morte aos pouquinhos. Alinhavei a frase num pedacinho dourado de papel, guardei na dobra da carteira, fechei a carteira, guardei-a no bolso, tirei a calça, botei-a no cabide, fechei o armário para sempre ter o bolso com a carteira com a frase no papel dourado bem guardadinhos.

Dois meses antes de eu completar meus noventa anos, lembrei-me de tudo isso, noviventado vivido que estava, era, sou. Novivida, resmungou meu bisneto caçula, e eu, comovido, tristemente percebi que a infância é capaz de se perder em neologismos ricos porque pueris.

Ontem comemorei, modo de dizer pois não comemorei lhufas, noventa anos. Vieram poucos amigos, afinal a maioria já é morta, enterrada e apodrecida. Compareceram minha tartaruga de estimação, uns seis ou sete jogadores profissionais de dominó, o avô da garota mais bonita da rua e, talvez, uma ou outra lembrança gasta. Era proibida a entrada de menores de sessenta.

Na rodinha mais interessante da festa, enquanto Seu Osmar reclamava de dor nas costas, Seu Firmino do reumatismo e Seu Horácio ficava só hein hein hein porque já faz tempo que era o mais surdo da turma, eu me pus a contar como foi que matei, duas semanas atrás, o jardineiro do prédio da frente. Odiava aquele jardineiro, sempre de tesoura em punho, decepando as plantinhas verdes. Odiava aquele jardineiro, que pensava ele que era, Deus por acaso, para ficar decidindo qual o tamanho definitivo de cada criatura? Odiava aquele jardineiro, principalmente porque ele comia metade das mulheres do prédio, inclusive minha bisneta mais velha.

Todos encararam o fato com naturalidade, o que me deixou mais à vontade, posto que percebi que a juventude contemporânea também havia chegado às solertes mentes de meus antigos amigos, e embora não quisesse, poderia comentar com eles quaisquer novidades que ninguém se poria a reclamar que o mundo está perdido mesmo. Fiquei à vontade, como disse, para contar como foi que cometi diversos outros crimes, como enfartar o Dr. Ruberi, suicidar Godofredo, estuprar Maria Augusta e até mesmo sonegar o imposto de renda.

A noite nem estava na metade e não foi preciso mais nada para que as piadas desaparecessem.

9.7.07

Atchim

Quando perto despertei senti que nada anda mas algo pulsava. Espirrei rinite alérgica. Funguei tentando segurar outro espirro. Não deu. Espirrei outra vez. E assim sucessivamente de modo que me recuso a narrar para não me chatear em demasia.

7.7.07

Sabão em pó neutro

Diz a rima que pode
Perceber a lua debaixo
De um pé de laranja

Mas aquela que fode
Esparrama-se no escracho
E pois se finge de anja

Diz à rima: explode
E num acho que não acho
Delícias me esbanja

6.7.07

Por que toda vez um não vou tem de ter porquê?

Um estrabismo social que nos acomete exige teletransporta pelo avesso. Tenho vontade de vomitar pesadelos na cara de quem inventou regras convenções etiquetas e afins. Sono é motivo. Sonho é motivo. Mas tudo o que eu quero é desmotivar a vida sem etcéteras e perdições. Hoje só amanhã.

5.7.07

Inutilia truncat

uma vez escrevi um poema - que talvez precise reencontrar nalguma gaveta suja ou dentro de um bolso roto de camisa marrom - no qual dizia estar cansado de ser humano. ser humano. cansado de ser eu um humano. cansado de conviver com tanto ser humano. cansado da existência humana como um todo de mim e dos outros. cansado.

cada vez mais repugno os manuais de sobrevivência nos quais condutas se apóiam. para que servem? para desiludirmo-nos ao constatarmos que ninguém os cumpre da maneira como esperamos que as pessoas falham os próximos também se desrespeitam e a ética virou estética. patético.

uma vez eu quero rasgar de vez todos os poemas filosofias contos crônicas cartas de amor romances letras de máquina de escrever do mundo inteirinho começando pelo meu quarto. da inutilidade da palavra escrita da inutilidade das pessoas da inutilidade da sobrevivência humana na face da terra. a ética virou ex-ética.

4.7.07

Do capítulo neutro

Desconstruir o mundo é missão para os jovens de espírito. Porque de suas mãos brotam versos fortes e escasseiam vilipêndios nervosos. Porque o que chamamos planeta se esfacela ao menor toque seco. Porque sim.

2.7.07

Faíscas

Na desconsciência consistente
o vazio que se enche:
começo, perverso, avesso.

Não tenha medo da lua
que escorre e enche a noite.
Não tenha medo de seu lado
e s c u r o
virado pelo direito.

Pressuponha um após
que há durante
antes mesmo de ser.

Lapsos não cabem em propósitos.