20.2.07

Porno-retratos sociais

Eu era contra a redução da maioridade penal. Contra. Até descobrir que o Lula também é contra. Agora, óbvio, sou a favor. Porque minha militância é contra o troglodita-reeleito. Sempre.

***

Washington Martins de Oliveira tem 43 anos, cinco filhos, um gol 88, dez dólares eternos na carteira, um CD do Roberto Carlos e umas sete prestações para pagar ainda este mês. Seis da manhã, acorda:
- Maldito despertador.

***

Já virou lugar-comum dizer que o troglodita-reeleito não sabe escrever. Eu acreditava, ainda, que ao menos soubesse contar. Nem que fosse para calcular o sem-limite de seu cartão de crédito oficial ou ajudar seus coleguinhas corruptos a contabilizar a grana toda... Mais uma vez fui traído por ele, que disse:
- Eu fico imaginando que, se a gente aceitar a diminuição da idade para puni-los, para 16 anos, amanhã estarão pedindo para 15, depois para 9, depois para 10...

***

Aperta o botão soneca do rádio-relógio e torce para nos próximos dez minutos o sol não invadir aquela frestinha chata da persiana. Faz que não ouve o barulho do trânsito ali na janela, tão pertinho da rua seu apartamento térreo. Ao seu lado, Josinete dorme. Uma morena bonita, apesar de o corpo já denunciar os 38 anos mal-vividos.

***

Em seus quatro primeiros anos de governo, as maiores realizações do troglodita-reeleito – pelo menos aquelas que lhe dão mais orgulho e são proporcionalmente mais dispendiosas – foram a nova churrasqueira para a Granja do Torto e o suntuoso Aerolula.

***

O dia será cheio. Washington levanta-se e corre para o banheiro. Josinete prepara o café preto. O menino mais novo, ainda bebê, abre um berreiro – acordou fora de hora, esse menino não dorme direito há semanas! O dia será difícil. Na cozinha, cheiro de café fresco abre o estômago jejuno enquanto, na parede, o relógio indica o atraso: dez para as sete.
- Hoje vou falar com o patrão.
- Fico torcendo.
Washington é mecânico da Oficina São Luiz. Ganha dois salários e meio mais cesta básica por mês. A isso, somam-se os 350 reais que Josinete traz para a casa porque trabalha como doméstica ali no mesmo bairro. As cinco crianças ficam sozinhas todos os dias – Marina, a mais velha, já tem 12 anos e sabe cuidar bem da molecada.

***

Em sua vadiagem absurda, o troglodita-reeleito mostrou bem o que rima com esse fajuto pacote de aceleração do crescimento: quase dois meses do novo desgoverno e nada de anunciar o ministério. Como se o país estivesse às moscas. Receio que esteja.

***

Nos últimos anos, a vida de Washington só piorou. Ninguém o ensinou a ler e a escrever e quanto mais a Oficina São Luiz cresce, mais chegam mecânicos com formação técnica ganhando mais. Seu salário é o mesmo desde sempre. Marina não vai à escola porque precisa cuidar dos irmãozinhos. Que também não vão à escola porque precisam ficar com a Marina. Pois Josinete tem que trabalhar.

***

Mas, claro, o ministério vem depois. Ele precisa antes descansar (de novo). Imagino mesmo que não fazer nada canse. Ah, como é boa a vida do troglodita-reeleito...
Lula poderia assumir logo esse desejo abusivo do direito ao descanso e, para o bem do Brasil, descansar em paz. Sob um túmulo bem bonitinho. Eu iria ao enterro, disfarçando a alegria. E, em seguida, participaria da imensa festa de alforria.

***

Washington não lê, portanto não lê jornais, nem revistas, nem livros, nem bulas de remédio. Washington não gosta de ver noticiários na televisão porque não compreende muito bem tanta notícia junta. Só vê futebol, corintiano. Josinete só vê novela das oito – que começa quase sempre pontualmente às nove – e esse negócio de biguebroder. Eles trepam três vezes por semana. Rápidos. Sem muito carinho, sem frescura. Depois, cada um para seu lado.
Quando um universitário bateu em sua casa e disse:
- Tô fazendo uma pesquisa, o senhor pode responder algumas perguntas?
Ele topou.
Não soube o que era mensalão, valerioduto, corrupção. Nem idéia de um sinônimo para falcatruas, lulopetismo, liberdade de expressão. Só sabia explicar o que significava mentira:
- É quando a pessoa fala que é, mas não é.
Washington acredita nas propagandas do governo. Na última eleição ele apertou treze na urna eletrônica. Foi um dos sessenta e tantos milhões que, iludidos, contribuíram para que o Brasil afundasse de vez.

***

E por falar em redução da maioridade penal, crime hediondo mesmo cometeu quem votou no troglodita-reeleito. Tão Brasil...

14.2.07

Reportando o dia do poema

era dia de semana e às 6h45 da manhã o poema despertou
tomou um gole de café amargo afoito e foi tomar o ônibus quase atrasado
depois tomaria naquele lugar ouvindo o chefe bravo tomando coca diet

no meio do ônibus as pessoas se chafurdavam umas nas outras
o poema sentiu-se meio perdido no meio do ônibus mas achou bom
e era legal ser um estranho no meio apenas para sentir as mãos e pernas perdidas

no ponto o poema desceu e viu que já estava no ponto para mais um dia
o sol ensandecido parecia que tinha levado três pontos na testa
e cansado iluminava todos os pontos de ônibus, outros pontos, e points do hemisfério

o poema olhou para a hora e viu que ainda não era hora de entrar
tinha quinze minutos para fazer hora e como a hora passa devagar quando se espera
decidiu acender um cigarro para acompanhá-lo nos tique-taques da hora

na espera desesperada o poema encontrou o amor e foram fazer amor
porque o amor inespera e chega nos momentos mais tediamente amáveis
e o poema amou o amor perdendo todos os sentidos como quem ama de verdade

já eram mais de duas da tarde quando o poema despediu-se do amor
e a despedida ficou com um gosto de quero mais despida e o amor piscou
quando o poema voltou a si, voltou à vida, voltou ao trabalho, foi despedido.

9.2.07

Gênese

Sempre odiei a professora Bárbara do Carmo. Porque ela ensinava semiótica francesa, quando devia se ater somente aos solecismos jornalísticos; porque ela ensinava semiótica francesa e eu sempre preferi a norte-americana. Porque ela fumava cigarros que não da minha marca favorita. Porque ela defenestrava os alunos que apareciam vestidos de amarelo - mesmo em dia de copa do mundo.

Sempre odiei a professora Bárbara do Carmo:

- Edison, não disse que se você chegasse atrasado mais uma vez, estouraria em faltas?

- Mas professora, a senhora precisa entender...

- Entender o quê, menino?

- A senhora sabe que eu tenho uma tartaruga, né? O nome dela é Tar, de tartaruga. Na verdade não é bem uma tartaruga, assim, mas é um réptil quelônio, só que terrestre. É um jabuti. Jabuti-piranga, se eu não me engano. Veio lá da Bahia, do sertão.

- E o que que tem isso a ver?

- Deixe-me acabar. Daí que um bicho desses deve viver mais de cem anos. E, como a Tar completou seu quinto aniversário mês passado, tinha a certeza de que ela seria legada aos meus netos. Só que, esta manhã, a Tar morreu. Você não pode imaginar a tristeza...

- Ahn.

- Daí que velório, essas coisas, tomam tempo. Daí que atrasei. Juro que não estava dormindo até às 9h40 quando a sua importante aula começa pontualmente às 8h, 8h15...

- Sei...

Sempre odiei a professora Bárbara do Carmo. Fazia questão de lhe assoprar baforadas de bons cigarros na cara, escolhia a dedo minhas roupas amarelas para satisfazê-la e caprichava nos comentários avessos à sua ideologia francesa. Sempre. Porque sempre odiei a professora Bárbara do Carmo. Ela vestia um par de óculos cor de superbonder e, pela espessura aparente, devia sofrer com uns oito graus de miopia do lado direito e uns seis e setenta e cinco do lado esquerdo. Se narizes também fossem passíveis de miopia, ela a teria em suas narinas salientes, disformes, certamente. Como não as são, preferia exibir um leve desvio de septo.

Sempre odiei a professora Bárbara do Carmo, principalmente dois dias depois de ela ter me dito que jamais se deitaria com um homem branco como eu, ainda que fosse dotado do mais capaz objeto direto. Sempre odiei a professora Bárbara do Carmo, e meu sonho era escrever esta frase umas cem mil vezes, para que toda a humanidade a decorasse. E quando ela, mais uma vez, se botar a ler Thomas Mann ou qualquer autor de sua predileção, antes iria encontrar na contracapa: "sempre odiei a professora Bárbara do Carmo".

Mas foi em seu ventre que se nasceram os nove gnominhos de minha imaginação.

4.2.07

Pelo avesso

Dentro da geladeira, congelou. No forno, assou. Óbvio assim. Quando caminhava pela cozinha, fingiu que evaporaria e quedou-se: taciturno como um espirro de mudo, lento lento lento como quem lendo Guimarães Rosa. Era camaleão.

Asfixiado, afixado, aficionado, afiado, uma afronta aos paradigmas pré-enraizados na vertigem doce de ser casa. Não sou daqui, diz. Não quero ficar aqui, diz. Não sei o que vim parar aqui, diz. Não, não, não, diz mais alto. E então se acorcunda de viés e rasga as roupas próprias vermelhas e quase rasga a pele também mas pára. Não adianta tanto assim brigar consigo mesmo.

Amanhã estará no jornal, em letras garrafais de primeira página, mas no jornal popular, sensacional, estrago. Amanhã estará no jornal, talvez até com foto sangrenta e tudo, a história do estrangeiro que de tanto se adaptar virou morto. Porque o desespero mata de suicídio.